A autonomia e a liberdade chegaram-me cedo demais. Quando se inicia a vida profissional antes dos 18, quando se começa a viver sozinho antes dos 20, quando se casa antes dos 22, quando se gera uma vida antes dos 26, quando se tem uma carreira de sucesso antes dos 40, chegamos aos 48 com a sensação de que tudo aconteceu assim porque os valores da independência falaram sempre mais alto.
Em prejuízo dessa “liberdade”, esteve a distância. Fui “livre”, voei sempre alto, tomei decisões ousadas e pus tantas vezes o “pé na poça” quantas entrei com o pé direito. Em todas elas, a distância de ti estava lá.
Distância física, de não te poder abraçar todos os dias, de não poder chorar no teu colo. Apenas física. Porque falámos com frequência através do telefone e tu me contavas como era viver no campo.
“Hoje enxertámos uma pereira e amanhã vamos apanhar pinhas para o inverno”. “Ontem andei a vindimar, tenho uma dor de costas que nem te digo nem te conto”. E eu a pensar com os meus botões que quando me reformasse não ia querer aquilo para mim.
Não podia estar mais errada. De todas as decisões de tomei, a de viver perto do campo foi a mais sensata que tive. E talvez o deva a ti, que me ensinaste a amar a natureza, a ter paciência e esperar pelas alturas certas de colher e plantar, a não resmungar quando chove porque a chuva é uma dádiva.
Hoje olho para trás e penso como a minha vida poderia ter sido diferente se eu te tivesse ouvido mais vezes. Se eu não tivesse sido demasiado “livre” quando no fundo me sentia presa e quando estive realmente aprisionada e achava que era livre.
Todas as decisões que tomei levaram-me aqui, onde estou agora. Numa altura em que já não te tenho comigo porque saíste deste mundo na altura da minha vida em que mais me fizeste falta.
Quando começou a primeira fase de confinamento, só pensava em proteger a mãe. Porque tu já não o podias fazer e porque eu estava, uma vez mais, distante. E desta vez a distância era mais do que física, era um afastamento entrópico, quase como quando se é míope e não se consegue ver bem. Uma distância de “não nos podemos ver, nem tocar, nem abraçar, todos corremos riscos e os mais velhos ainda mais, máscara, luvas, viseiras, álcool, lavar as mãos, não sair, não tossir, não espirrar, não cumprimentar, mortes, hospitais, ventiladores, pressão zero, paciente zero.” Quando falava com ela ao telefone, sentia-a ainda mais longe do que habitualmente, talvez porque o medo nos comia as palavras e o receio de nos perdermos uma à outra nos abafava o peito. “Mãe, por favor não saia à rua, tome o cafezinho em casa, deixe lá as caminhadas, fique em casa. Olhe, dance na sala, ponha a música em altos berros. O quê? Foi a casa da vizinha fazer o quê? Não, mãe, não se pode. Se precisar de alguma coisa, encomende por telefone e peça que lhe entreguem em casa. Não vá à janela ver quem passa, espreite só pelo cortinado e diga adeus de longe”.
Quando nos desconfinaram, fui ter com ela. “Não tocar, nem abraçar, todos corremos riscos e os mais velhos ainda mais, máscara, luvas, viseiras, álcool, lavar as mãos, não sair, não tossir, não espirrar, não cumprimentar, mortes, hospitais, ventiladores, pressão zero, paciente zero.” E logo eu, que só queria beijá-la. Beijar-lhe a testa em respeito, beijar-lhe as mãos em amor, beijar-lhe a face em amizade, beijar-lhe o nariz em brincadeira. O mundo só me deixou abraçá-la com muita força, como há muito não o fazia. E nesse abraço entraste tu, entrou ela, entraram os nossos, entrou toda uma onda de saudade, reverência, humanidade, solidão, medo, alegria, dor, amor, amor e amor.
Nesse momento, fui livre. Presa em toda a minha vontade de lhe cair no colo ou lhe fazer penteados, de lhe dar a mão ou de lhe dar “turrinhas”, mas livre naquele abraço de quem já é mãe mas que procura na sua própria mãe o abrigo e descanso de que “vai ficar tudo bem” mesmo que no fundo haja um medo cego de que pode correr mesmo tudo muito mal.
O novo “normal” não existe. Tudo é diferente agora. E não só porque não podemos tocar, nem abraçar, máscara, luvas, viseiras, álcool, lavar as mãos, não sair, não tossir, não espirrar, não cumprimentar, mortes, hospitais, ventiladores, pressão zero, paciente zero. Tudo é diferente agora porque as cores são mais vivas, o ar faz-nos mais falta, o céu está mais límpido e o mar… o mar está tão mais azul. Na televisão dizem que há mais esperança no ar, há solidariedade, há pessoas que não cozinhavam e já fazem pão em casa. Que se aprecia mais o sol, a chuva, a brisa, as flores. Como alguém dizia, a primavera não quis saber da pandemia e pelos vistos o verão também não. Dizem que os canis estão a ficar sem cães e gatos e que as famílias estão a estreitar laços. É o que dizem. É o que se fala na TV. Eu e tu sabemos que não é assim, mas não vamos ser os desmancha-prazeres que vão dizer que vai continuar tudo na mesma porque o homem não aprende, não achas melhor? Fiquemos só aqui os dois de “mãos dadas” a pensar nos excertos das pereiras e nas vindimas, enquanto eu tento a minha sorte na poda deste limoeiro.
Carla Soares
Coach de Carreira
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