“Os Canibais”, de Álvaro do Carvalhal

“Os Canibais”, de Álvaro do Carvalhal

Há um mês atrás, uma editora, uma verdadeira editora — daquelas pessoas já tão escassas que mais do que editar livros em prol do lucro os anima e os esparge por todos aqueles que encontra — depositou-me nas mãos, inusitadamente, dois pequenos tesouros: o Mistério do Mário de Sá Carneiro e Os Canibais, de Álvaro do Carvalhal. Se o primeiro, apesar de pequeno, já continha em si o peso do confiado, o segundo nada dizia à minha pobre cultura literária.

Não furei as minhas leituras do momento para lhe dar lugar. Deixei-o sossegado na estante até que uma viagem de comboio me exigiu que procurasse um livro leve e com letra acessível não só à minha miopia como também à sonolência e ao embalo de viagem. Cada livro também contém em si, sempre, um lado pragmático e ajustável às circunstâncias. E Os Canibais entraram na mochila. Li a primeira página umas quatro ou cinco vezes. Não por me perder, não por não perceber, mas pelo êxtase da descoberta.

Descobri o Edgar Allan Poe português. Mais do que isso, porque é sempre desconsideração a comparação de um autor com outro sobejamente célebre, digamos que descobri mais um dos autores portugueses esquecidos. Incompreensivelmente esquecido ou desconsiderado.

Por entre as descrições dos bailes de outrora, dos rendados dos vestidos e dos cochichos de donzelas e cavalheiros, dá-se um enamoramento. Um enamoramento com três ângulos. A descrição é feita com todos os detalhes do realismo romântico, numa sátira social cheia de ironia e com um narrador sempre presente e que conversa ludicamente com o leitor, interrompendo constantemente a narrativa:

«O meu conto é amador do sangue azul; adora a aristocracia. E o leitor há-de peregrinar comigo pela alta sociedade; hei-de levá-lo a um ou dois bailes, despertar-lhe o interesse com mistérios, amores e ciúmes que se armazenam por esses romances de amar ao efeito. Ora ouça que eu principio moldando-me pela velha costumeira: A abóbada azul do céu alumiava com milhões de estrelas os coruchéus, obeliscos e arcadas da decrépita arquitetura da cidade. (…)»

Margarida (Dona Margarida) apaixona-se perdidamente pelo misterioso Visconde de Aveleda. No entanto, D. João tem por ela um amor inegável. É este o mote, que não tem em si nada de novo ou de particularmente chamativo. Importa o que vem a seguir: a boda, a noite que a sucede e todo o tormento que daí advirá. Mais uma vez Álvaro do Carvalhal quer satirizar a morte, a solução tão limpa do romantismo, e carrega-la de horror. A narrativa oscila entre a sátira, o mistério, o fantástico e o desvelar do terror, num jogo de cintura equilibrado. E se o canibalismo começa por ser um problema que leva personagens a pensar no suicídio, a lembrança de uma fortuna a receber dissuade-os imediatamente. Até ao final, a crítica social acentuada. Vale a pena ler este texto e intercalar gargalhadas com olhos arregalados, para além de todo o valor literário num dos escritores portugueses que ficou sempre — e incompreensivelmente — fora dos cânones.

Vanessa Martins

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