“Diário de um Mau Ano”, de J. M. Coetzee

“Diário de um Mau Ano”, de J. M. Coetzee

Em Dezembro decido sempre, a cada ano, uma leitura que faça jus ao ano que tive. Como um selar de 365 dias numas só obra e, fechado o livro, começar uma narrativa nova. Neste ano que passou ainda agora a escolha foi feita de forma bastante clara: 2017 foi um ano de grandes desilusões e projetos que se perderam a meio caminho. Um ano de provações que merecia uma leitura espessa, consciente e sem felicidades plastificadas. “Diário de Um Mau Ano”, do Nobel J. M. Coetzee foi a escolha acertada. Atenção que não queria com isto encher-me de piedade ou raiva ou angústia, pelo contrário. Queria ler outro Mau Ano, melhor escrito que o meu, para me encher de garra. E logo a primeira página foi uma surpresa. Não sabia absolutamente nada da obra, confiava apenas no conceituado autor e no título ríspido e direto.

A leitura começou tão rápida que nem reparei numa linha separadora, quase no final da página. Aí chegada, percebi que o texto que estava a ler teria continuação na página seguinte e se iniciava aí uma nova narrativa. Tentei organizar-me o melhor possível na estrutura desusada. Continuei. Percebi que a primeira parte da página era dedicada a ensaios políticos, sociológicos, filosóficos, todos eles de cariz contemporâneo e ainda tão em dia, apesar da primeira edição ser de 2008 e agora os tempos mudarem tão constantemente. A segunda parte da página estava escrita na primeira pessoa, um narrador autodiegético, como se diz agora. Era a voz do autor dos ensaios. Havia ali portanto um escritor, e os seus escritos. Agradou-me. Continuei. Páginas adiante, a estrutura adensa-se: mais um corte, mais um narrador. Temos, portanto, um romance escrito a três vozes: a voz do ensaio, a voz e as angústias do ensaísta, escritor reconhecido mas já com certa idade, que contrata uma mulher interessante para ser sua dactilógrafa. E por fim a voz da dactilógrafa, também ela a narrar na primeira pessoa que revela a sua relação com o escritor. A estranheza primeiro, as críticas às temáticas e à forma de escrita, a aproximação vivencial, a comunicação com o seu companheiro. Tudo se passa num cenário pouco vasto, uma vez que são vizinhos do mesmo prédio, apartados por alguns andares. Três personagens: JC, o escritor; Anya, a dactilógrafa e Allen, o seu companheiro. A realidade, os ciúmes e as oscilações valorativas vão-se adensando, em divergências que ganham contornos muitos deles espelhados nos ensaios descritos acima. É um livro que fala da realidade do dia a dia, das pessoas como elas são, nem boas nem más, um misto que se balanceia e que às vezes se domina, outras se encobre.

«É como a maquilhagem. A maquilhagem pode ser uma mentira, mas nem toda a gente a usa. Se toda a gente usar maquilhagem, a maquilhagem passa a ser a maneira como as coisas são, e o que é a verdade senão a maneira como as coisas são?»

É um livro sobre a realidade, o mundo na sua forma mais comum. E o mundo na sua forma mais comum tem vícios, tem mentiras, tem trapaças, mas tem valores também.

Boas leituras, e votos de um Bom Ano!

Vanessa Martins

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